Tuesday, July 31, 2007

Agosto

Eu até nem gosto assim tanto de praia. Não fosse o puto e só lá me apanhavam por meia hora, no máximo, o tempo de ir descalça até lá ao fundo, com os pés na areia molhada e as ondas a virem, de vez em quando, salpicar-me os tornozelos. Depois ia sentar-me no café, à sombra da varanda, bebia um sumo de laranja ou comia um crepe de chocolate na companhia de um livro ou do jornal ou de ambos. Poderia ficar ali horas. A ver o mar, a ver as pessoas que descem a ladeira, a procurar o meu surfista lá longe, um homem de preto no meio de uma dúzia de homens de preto, a passar as páginas, a ouvir o Ben Harper. Podia ser Outubro ou Dezembro, podia até estar a chuviscar, e eu embrulhava-me ainda mais no casaco, pedia uma bica e deixava-me estar, sem ter que espalhar cremes nem fazer castelos de areia nem saltar as poças nem correr feita tonta nem procurar caranguejos nem tomar banho na água gelada nem preocupar-me com a celulite nem ficar estoirada e ter que ir no dia seguinte e no outro e no outro até ao fim de Agosto.

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Sunday, July 29, 2007

A minha avo Helena

Mais ou menos por alturas do ciclo eu e a minha irmã decidimos ensinar inglês à avó Helena. Quando ela ia passar uns dias lá em casa dávamos-lhe um caderno e obrigávamo-la a repetir My name is Helena, My name is Helena. A minha avó confundia-se um bocado por o “a” se ler “ei” e não conseguia contar mais do que dez mas, mesmo assim, estávamos entusiasmadas. Acordávamos de manhã e corríamos para a cama dela a gritar good morning, the sun is shining. Sem saber, a minha avó foi uma cobaia, a primeira aluna da minha irmã, que hoje é professora de inglês e tem muito mais trabalho a explicar estas mesmas coisas a adolescentes insolentes.
A avó Helena, porque era a avó das férias e dos fins-de-semana, tinha uma paciência infinita. Contava-nos a história da raposa e da cegonha e jogava connosco à bisca e ao burro em pé. Ajudava-nos a fazer vestidos para as bonecas, com choleados e baínhas a preceito. Dava-nos algodão para lançarmos às andorinhas alojadas no beiral. E quando fomos para o liceu era em casa dela que almoçávamos todos os dias. À medida que subíamos ao terceiro andar começávamos a sentir o cheiro da batata doce frita (foi até hoje o único sítio onde comi batata doce frita) e dos bifes com alho. Foi dela que herdei os dedos esguios nas mãos e nos pés, os joanetes e os sinais que me salpicam o corpo até nos locais mais inesperados.
Um dia, a avó saiu de casa e esqueceu-se do almoço no fogo. Noutro dia perdeu a carteira. Noutro começou a perguntar por pessoas mortas. Noutro levámo-la ao médico para confirmar que ela tinha Alzheimer. No dia do funeral, eu e a minha irmã recordámos as aulas de inglês dadas entre os lençóis e imaginámo-la a chegar ao céu, com aquele ar espevitado que sempre tinha, e a dizer ao São Pedro: Hello, My name is Helena. How are you?

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Saturday, July 28, 2007

Mesa posta

Língua estufada. Pombos de cebolada. Codornizes fritas. Açorda de beldroegas. E de espinafres. E de tomate. Açorda de alho. Cabidela. Cozido à portuguesa. Desde que saí de casa dos meus pais que deixei de comer uma série de pratos de que gostava. A minha alimentação é uma monotonia de grelhados de diversas carnes, arroz e salada. Às vezes uma jardineira. Um frango com um molho qualquer. Muitas massas. Pizzas na brasa e lasanhas Marco Bellini. Nunca mais comi rins nem iscas. Raramente faço peixe. Muito menos peixe frito ou grelhado, incomodam-me os fumos e os cheiros. Não sei fazer coelho. Nem caldeirada. Nem costoletas de borrego. Atrevo-me na feijoada, desde que os feijões venham na lata, e faço uns bons ovos mexidos. Sei fazer umas torradas de chorar por mais. E uns flocos divinais. Há dias em que tenho alguma fome.

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Wednesday, July 18, 2007

Nao ha amor como o primeiro?

O meu primeiro amor também andava na terceira classe mas na sala da professora Dília e, por isso, eu só o via no recreio, a jogar à bola e a brincar à apanhada. Ele corria muito. Corria mais do que todos os outros. E tinha um sorriso lindo. Controlei-lhe os passos de longe até nos encontrarmos na turma do segundo ano do ciclo quando, sabe-se lá como, consegui convencê-lo a fazer os trabalhos de grupo connosco. Naquele tempo havia muitos trabalhos de grupo. Ele ia lá a casa e bebia leite com chocolate e eu ria-me muito de todas as parvoíces que ele dizia. Mas nessa altura ele já era o primeiro amor de metade das raparigas da escola, incluindo de uma das minhas melhores amigas, uma miúda de caracóis densos e sorriso franco com quem passei alguns dos melhores momentos da minha vida. Foi ela que me ensinou a jogar ao elástico. Vimos juntas, vezes sem conta, as cassetes do Top Gun e do Dirty Dancing. Partilhámos as dúvidas sobre como seria um beijo à séria e o que fazer com a língua. Suspirávamos juntas pelo nosso primeiro amor. Gostarmos do mesmo rapaz não foi problema até porque, pouco depois, o segredo já se tinha espalhado e o rapaz – chamava-se Álvaro – inchado na sua vaidade de 12 anos gozou com todas nós e acabou por ir namorar uma rapariga mais velha que, com certeza, já sabia tudo sobre beijos com língua. Continuei a controlá-lo de longe por mais uns anos, só por curiosidade. Lá pelo 10º anos ouvi dizer que se começou a drogar e que deixou de estudar. Que emagreceu muito e já não tem aquele corpo atlético que eu tanto admirava. Que se meteu em confusões, roubou dinheiro à avó, fugiu de casa. Que foi para Inglaterra e nunca mais voltou. O meu primeiro amor é um junkie.

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A Gata

Então e se lhe chamasses A Gata Christie?
Olhei para aquele montinho de pêlo cinzento enroscado a um canto do sofá e achei piada ao nome. Eu nunca tinha gostado muito de gatos. Mas no início de 1998, depois de seis anos a morar num quarto em casa da dona Idalina, pensei que já era altura de me mudar para uma casa que não cheirasse a cobertores amarfanhados em naftalina e onde pudesse entrar, a qualquer hora, sem ter de encarar o olhar reprovador que me esperava no sofá. A P. trabalhava a poucos metros da minha secretária mas eu quase nunca falara com ela. Não me lembro quem foi que me disse que ela também estava à procura de casa mas sei que depois de uma pequena conversa decidimos ali mesmo que iríamos morar juntas. Encontrámos um apartamento num sexto andar em Benfica, paredes-de-meias com uma grande amiga. Os dois quartos, o corredor e a sala estavam forrados com uma alcatifa vermelho escuro, a televisão era a preto e branco e o papel de parede deprimente mas a mim pareceu-me um palácio. A P. também deve ter achado que era um palácio porque não descansou enquanto não arranjou um gato para lá morar, era mesmo o que nos faltava, dizia, um gatinho lindo, para que isto seja uma casa a sério.
Afinal era um gata. Uma gatinha recém-nascida com cara de Sissi. Não, de Marota. Não, de Felpuda. Foi o E., um amigo cinéfilo e de humor sofisticado, que disse:
Então e se lhe chamasses A Gata Christie?
Olhei para aquele montinho de pêlo cinzento enroscado a um canto do sofá e achei piada ao nome. Foi assim que A Gata Christie se tornou uma de nós.


Infelizmente o nome não era nada prático. Oh Gata Christie não arranhes a cadeira, oh Gata Christie sai de dentro da cama, oh Gata Christie não se faz chichi no chão. A vida não está para nomes tão compridos. Gata, simplesmente Gata, assim ficaria conhecido o animal que quase destruiu o palácio de Benfica e deixou marcas irreparáveis na nossa pele. Eu nunca tinha gostado muito de gatos e não estava propriamente a adorar a experiência mas quando a P. apareceu, um dia, carregando no colo um gatinho castanho tão escanzelado quanto pulguento, não lhe consegui dizer que não. O bicho tinha sido abandonado com poucos dias de vida, ainda nem sequer conseguia beber leite de um prato e tremia que nem varas verdes. À noite, os seus miados lancinantes ecoavam pelo prédio e faziam-nos acordar de mau humor. Por essa altura, decidimos arrancar a alcatifa das três assoalhadas, comprar uma embalagem gigante de Whiskas e reforçar o estoque de areia empacotada. Nas famílias, mesmo as mais pobres e desesperadas, há sempre lugar para mais um.


A Gata e o Bicho tornaram-se rapidamente amigos inseparáveis. Tão inseparáveis que, apesar de todos os nossos cuidados, a Gata engravidou duas vezes e teve uma dúzia de gatinhos cinzentos e castanhos que saltitavam pela casa como Gremlins e se enfiavam nas gavetas, por trás dos livros, dentro dos sapatos. Tivemos que impingi-los a amigos e conhecidos a quem assegurávamos, de sorriso nos lábios, que estes irrequietos animais de vinte centímetros eram, afinal, uns santos, capazes de nos enternecer mesmo quando chegamos a casa mortos de cansaço a suspirar por um banho de espuma e um chocolate quente.
Eu nunca gostei muito de gatos mas quando, ao fim de dois anos, a casa começou a tornar-se de facto pequena para tanta gente – entre humanos e felinos éramos já seis nas três assoalhadas -, confesso que comecei a matutar no que iríamos fazer com a nossa prole. A P. saiu primeiro e levou o Bicho. Eu mudei-me pouco depois com a nossa Gata. Foi um choque para ambos. Ele entrou em depressão, tornou-se insociável, escondia-se atrás da máquina de lavar roupa e não deixava ninguém tocar-lhe. Ela tinha ataques de loucura em que corria pelo apartamento, ainda mais pequeno do que o anterior, deitando por terra tudo o que lhe aparecesse à frente. Foi assim até ao tempo em que as barrigas cresceram e de repente era preciso arranjar espaço para outras crias nas nossas vidas.
A Gata e o Bicho voltaram a encontrar-se numa quinta em Santarém. Parece que sofreram um pouco a adaptar-se ao campo, a andar com as patas na terra, a comer formigas e a fugir de outros gatos, cães e demais animais que eles, até então, desconheciam. Parece que de vez em quando desapareciam por uns dias e regressavam a coxear, com feridas lambidas e olhar mortiço. Parece que voltaram a ter mais gatinhos cinzentos e castanhos. E que depois acasalaram com os seus próprios filhos num daqueles comportamentos selvagens que nos faz duvidar da beleza da natureza.
Nunca gostei muito de gatos mas, não sei porquê, no momento de dar um nome a este blogue lembrei-me da minha Gata. A Gata Christie.

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